sábado, 14 de julho de 2018

“Estudos sobre a Palavra de Deus” - Tito (Parte 2)



EPÍSTOLA A TITO CAPÍTULO 2

Tito, que devia não só estabelecer outros para velarem pelo procedimento dos fiéis, mas também, estando ali revestido de autoridade, devia ele próprio velar pela boa ordem e comportamento moral dos Cristãos, estava encarregado (o que, de resto, se encontra nas três epístolas) de velar para que cada um, na sua posição, andasse segundo as conveniências morais e segundo as relações reconhecidas por Deus - coisa importante e que põe ao abrigo dos ataques de Satanás, e ao abrigo da confusão na Igreja. Reina na Igreja a verdadeira liberdade. A ordem moral é a garantia dessa liberdade e o Inimigo não encontra outra ocasião para desonrar o Senhor ou para arruinar o testemunho e lançar tudo em desordem, dando também ocasião ao mundo de blasfemar, senão o grave esquecimento da graça e da ordem entre os Cristãos. Que ninguém se engane! Se essas conveniências não forem guardadas (e elas são belas e preciosas), a liberdade (e ela é bela e preciosa, desconhecida do mundo, que não sabe o que é a graça), a excelente liberdade da vida cristã, presta-se à desordem que desonra o Senhor e lança por toda a parte a confusão moral.

Muitas vezes, vendo que a fraqueza do homem dava lugar à desordem, onde reinava a liberdade cristã, em lugar de se procurar o verdadeiro remédio, destruiu-se a liberdade, baniu-se à força, a operação do Espírito ­porque onde está o Espírito ali está a sã liberdade em todos os sentidos - e a alegria das novas relações em que todos são UM. Mas, quebrando todos os laços, por amor do Senhor, quando é preciso, o Espírito reconhece todas as relações que Deus formou, mesmo quando as rompe (como faria a morte), quando o chamamento de Cristo, superior a todas essas relações, o exige. Mas, enquanto estivermos colocados nessas relações (fora do chamamento de Cristo), devemos atuar ali convenientemente; a idade, a juventude, o homem, a mulher, a criança, os pais, o servo, o senhor, todos têm uns para com os outros, um comportamento a manter segundo a posição em que se encontram.

"A sã doutrina" tem em consideração essas diversas relações e mantém, nas suas advertências e nas suas exortações, todas as conveniências da vida. É o que o apóstolo diz aqui a Tito acerca dos homens idosos, das mulheres idosas, das jovens (perante seus maridos e seus filhos e quando a toda a sua vida, que deve ser modesta e doméstica); acerca dos jovens, para os quais Tito tem de ser um exemplo contínuo, acerca dos servos perante os seus amos, e acerca de todos perante os magistrados e mesmo perante todos os homens. Mas antes de falar deste último ponto, Paulo expõe o grande princípio que constitui o fundamento da conduta dos santos entre si neste mundo, porque o seu procedimento para com os magistrados e para com o mundo tem um outro motivo.
O comportamento dos Cristãos, como tal considerados dentro da Igreja, tem as doutrinas especiais do Cristianismo por base e por motivo. Essas doutrinas e esses motivos encontram-se nos versos 11-15 deste capítulo, que fala precisamente desse comportamento. O motivo particular para o caráter do seu procedimento perante o mundo encontra-se nos versos 2 e seguintes do capítulo 3.

Os versos 11-15 do capítulo 2 contém um sumário notável do Cristianismo, não precisamente das suas doutrinas, mas do Cristianismo apresentado como realidade prática para os homens. A graça apareceu, não limitada a um povo particular, mas sim para todos os homens; não carregada de promessas e de bênçãos temporais, mas si trazendo a salvação. Vem de Deus para os homens, trazendo-lhes a salvação. Não espera a Justiça da parte deles; traz a salvação àqueles que dela têm necessidade. Preciosa e simples verdade, que nos faz conhecer a Deus, nos põe no nosso lugar, mas põe-nos ali segundo a graça que derrubou todas as barreiras para se dirigir a todos os homens sobre a Terra, de harmonia com a soberana bondade de Deus.

Tendo trazido a salvação, a graça instrui-nos perfeitamente acerca da nossa vivência neste mundo - e isto em relação a nós mesmos, em relação aos outros homens e em relação a Deus. Renegando toda a impiedade e toda a cobiça que encontra a sua satisfação neste mundo, devemos pôr um freio à vontade da carne a respeito de tudo e viver sobriamente; devemos reconhecer os direitos dos outros e conduzir-nos justamente. Devemos ter o sentimento dos direitos de Deus sobre os corações dos que são Seus e exercer a piedade.
Mas o nosso futuro também é iluminado pela graça. É ela que nos ensina a aguardar a bem­-aventurada esperança e a aparição da glória do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo.

Veio a graça - e é ela que nos ensina a andar neste mundo e a esperar a aparição da glória na Pessoa do próprio Senhor Jesus Cristo. A nossa esperança está pois, bem fundada. Cristo é-nos justamente precioso. Podemos ter no coração toda a confiança pensando na Sua aparição em glória, e temos o mais poderoso motivo para uma vida consagrada à Sua glória. Ele deu-Se por nós para nos resgatar de toda a iniquidade, e purificar para Si mesmo um povo que Lhe pertence como coisa particular zeloso pelas boas obras, de harmonia com a vontade e a natureza de Cristo.

É isto o Cristianismo. A graça proveu a tudo: passado, presente e futuro segundo Deus; ela nos livra deste mundo fazendo de nós um povo separado para Cristo de harmonia com o amor com que Ele Se deu por nós. O Cristianismo é a purificação pela graça, mas uma purificação que nos consagra a Cristo. Somos de Cristo como Sua parte pessoal, é Sua posse no mundo, animados do amor que está n’Ele, para fazermos bem aos outros e darmos testemunho à Sua graça. Esta passagem é um precioso testemunho ao que é o Cristianismo na sua realidade prática, como obra da graça de Deus.

EPÍSTOLA A TITO CAPÍTULO 3

Pelo que concerne ao comportamento dos Cristãos perante o mundo, a graça tem feito desaparecer a violência e o espírito de rebelião e de resistência que agita o coração daquele que não crê, e que tem a sua origem na vontade de manter os seus direitos em face dos outros. O Cristão tem a sua porção, a sua herança noutro lugar - e não neste mundo. Por isso está tranquilo e submisso aqui, e sempre pronto a praticar o bem. Mesmo quando os homens são injustos e violentos consigo, ele os suporta, lembrando-se de que, noutros tempos, não era diferente. Lição difícil de aprender, porque a violência e a injustiça fazem ferver o coração. Mas o pensamento de que a injustiça da qual sofremos é o fruto do pecado e que outrora nós também éramos seus escravos, produz a paciência e a piedade. Foi só a graça que fez a diferença - e devemos atuar para com os outros em harmonia com esta graça.

O apóstolo dá aqui o triste resumo dos traços característicos do homem segundo a carne - do que nós éramos: pecado, doidice, desobediência... Estávamos enganados, éramos escravos das cobiças, estávamos cheios de malícia, plenos de inveja, odiosos e odiando os outros. Tal é o homem caracterizado pelo pecado.

Aparecem então a bondade de um Deus Salvador, a Sua benignidade e o Seu amor pelos homens (doce e precioso caráter de Deus) (4) (verso 4). Revestiu o caráter de Salvador, nome que Lhe é particularmente dado nestas três epístolas, a fim de que, na nossa vivência, levemos a marca desse caráter, para que o nosso espírito seja dele penetrado.
A nossa vivência no mundo e o nosso procedimento para com os outros homens dependem dos princípios das nossas relações com Deus; o que nos tem tornado diferentes dos outros não é qualquer mérito em nós, nem qualquer superioridade pessoal. Nós mesmos éramos como eles. O que nos tem tornado diferente é o terno amor, a terna graça do Deus de misericórdia. Ele tem sido bom e misericordiosos para conosco, e quando nós temos aprendido esta misericórdia, somos misericordiosos nas nossas relações com os outros. É verdade que esta misericórdia tem atuado no sentido de nos purificar e de nos renovar por um princípio e numa esfera de vida inteiramente novos. Nós não podemos andar com o mundo, como fazíamos dantes; mas atuamos para com os outros, que estão ainda na lama deste mundo, como Deus tem atuado para conosco, para nos tirar dela e para nos fazer gozar das coisas que desejamos, segundo o mesmo princípio de graça, para que os outros gozem também. O sentimento do que nós éramos e o sentimento da maneira como Deus tem agido para conosco juntam-se para governarem o nosso procedimento para com os outros.

Ora, quando apareceu esta bondade de um Deus Salvador, não era algo de vago e de incerto: Ele salvou-nos, Não por obras de justiça que nós tivéssemos feito, mas segundo a Sua própria misericórdia, lavando-nos e renovando-nos. Estas últimas palavras exprimem o duplo caráter da Sua obra em nós. São os dois mesmos pontos que se encontram na conversa do Salvador com Nicodemos (João 3). Todavia, é acrescentado aqui o que tem agora o seu lugar, por causa da obra de Cristo, a saber que o Espírito Santo é também derramado ricamente sobre nós, para ser a força da nova vida da qual Ele é a fonte. O homem é lavado e purificado. É lavado dos seus antigos hábitos, dos seus antigos pensamentos, dos seus antigos desejos, no sentido prático. Lava­-se aquilo que existe. O homem era naturalmente mau e estava sujo na sua vida interior e exterior. Deus salvou-nos purificando-nos. Não poderia fazê-lo de outro modo. Para se estar em relação com Ele é indispensável a pureza prática.

Mas esta purificação está essencialmente feita. Não é o exterior do vaso; é a purificação pela regeneração. Por outras palavras, e sem dúvida alguma, é a comunicação de uma nova vida, fonte de novos pensamentos em relação com a nova Criação de Deus, capaz de gozar da Sua presença e da luz da Sua face. Mas esta nova vida em si mesmo é uma passagem do estado em que nos encontrávamos a um outro inteiramente diferente - da carne, pela morte, ao estado de um Cristo ressuscitado.

Mas há um poder que atua nesta nova vida e que a acompanha no Cristão. Não é apenas uma mudança subjetiva, como alguns dizem; há um Agente ativo, divino, que comunica algo de novo, de que Ele próprio é a origem, a saber, o próprio Espírito Santo, Deus atuando na Criatura (porque é sempre pelo Espírito que Deus atua imediatamente sobre a Criatura). E é sob o caráter do Espírito Santo que Ele atua nesta obra de renovação. Há uma nova fonte de pensamento em relação com Deus; não só uma capacidade vital, mas também uma energia que produz o que é novo em nós.

Perguntar-se-á, talvez, quando tem lugar essa renovação pelo Espírito Santo? É no princípio, ou então após a regeneração (5) de que fala o apóstolo? Creio que Paulo fala dela segundo o caráter da obra, e que acrescenta "derramou sobre nós" (o que caracteriza a graça deste tempo) para mostrar que há ainda uma outra verdade, a saber, que o Espírito Santo, sendo "derramado sobre nós", continua a Sua ação, para manter pelo Seu poder, o gozo da relação em que nos colocou. O homem é purificado em relação com essa nova ordem de coisas mas o Espírito Santo é a origem de uma vida inteiramente nova, de pensamentos inteiramente novos - não só de um ser moral, mas também da comunicação de tudo aquilo em que esse novo ser se desenvolve. Não se pode separar uma natureza dos objetos acerca dos quais ela se desenvolve e que formam a esfera da sua existência e a caracterizam.

É o Espírito Santo que dá os pensamentos, que cria e forma totalmente o ser moral do novo homem. O pensamento e o pensador não poderiam separar-se moralmente, ali, onde o coração se ocupa do pensamento. No homem salvo, o Espírito Santo é a fonte de tudo; e, por ser assim, o homem está definitivamente salvo.

O Espírito Santo não dá apenas uma nova natureza: Ele dá-nos em relação com uma ordem de coisas inteiramente nova ("uma nova Criação") e enche-­nos, quanto aos nossos pensamentos, das coisas que ali se encontram. É por isso que, embora sejamos colocados nessa nova Criação, uma vez por todas, a obra, quanto à operação do Espírito Santo, continua, porque Ele nos comunica sempre mais e mais das coisas desse novo mundo em que nos introduziu. Ele toma das coisas de Cristo e mostra-nos - e tudo o que o Pai tem é de Cristo! Eu creio que “a renovação do Espírito Santo" compreende tudo isso, embora o apóstolo diga que Deus "O derramou abundantemente sobre nós"; de sorte que não se trata apenas de sermos nascidos d'Ele, mas também de Ele operar em nós, comunicando-nos tudo o que é nosso em Cristo.

O Espírito Santo é derramado abundantemente sobre nós por Jesus Cristo, nosso Salvador, para que, tendo sido justificados pela graça, sejamos herdeiros segundo a esperança da vida eterna. Creio que o antecedente de "para que" é "a lavagem da regeneração e a renovação do Espírito Santo", e que a frase "que Ele derramou abundantemente sobre nós por Jesus Cristo, nosso salvador" é um parêntesis acessório para mostrar que nós temos a plenitude do gozo dessas coisas pela força do Espírito Santo.

Assim, por essa renovação, Ele nos salvou, para sermos herdeiros, segundo a esperança da vida eterna. Não se trata de nada de exterior, de terrestre, de tangível. A graça deu-nos a vida eterna. É para que a possuamos que fomos justificados pela graça de Cristo (6). Assim há energia, força, esperança pelo rico dom do Espírito Santo. Para que possamos ser dele participantes, fomos justificados pela Sua graça, e a nossa herança está na alegria incorruptível de vida eterna.

Deus salvou-nos, não por obras, nem por meio (7) daquilo que somos, mas pela Sua misericórdia; agiu para conosco segundo as riquezas da Sua própria graça, de harmonia com os pensamentos do Seu próprio coração.

É destas coisas que o apóstolo quer que Tito se ocupe - disto que nos põe, com ações de graças, em relação prática com o próprio Deus e nos faz sentir o que é a nossa porção, a nossa parte eterna na Sua presença. Isto atua sobre a nossa consciência, enche-nos de amor e de boas obras, faze-nos respeitar todas as relações de que o próprio Deus é o Centro. Nós estamos em relação com Deus, de acordo com os Seus próprios direitos; estamos perante Deus, que faz respeitar, pela consciência, tudo o que Ele próprio estabeleceu.

Tito devia evitar as questões insensatas e as disputas sobre a lei, assim como tudo o que pudesse destruir a simplicidade das relações dos fiéis com Deus, segundo a revelação imediata de Si próprio e da Sua vontade em Jesus Cristo. É sempre o Judaísmo gnóstico que se levanta contra a simplicidade do Evangelho. A lei e a justiça do homem são o que destrói, pela introdução de seres intermediários, a simplicidade e o caráter imediato das nossas relações com o Deus da graça.

Quando alguém quisesse fazer prevalecer a sua próprio opinião, e, por causa disso, criasse partidos na assembleia, após ter sido admoestado primeira e segunda vez, devia ser rejeitado. A fé de um tal homem está arruinada. Peca e é condenado por si próprio. Não se contenta com a Igreja de Deus, com a verdade de Deus preferindo fazer a sua própria verdade. Porque é ele então cristão, se o Cristianismo, tal como Deus o deu, lhe não basta? Ao criar um partido baseado nas suas próprias opiniões, um tal homem condena-se a si próprio.

Na parte final desta epístola encontramos um pequeno resumo da atividade cristã, produzido pelo amor de Deus, e dos cuidados a ter para que os rebanhos gozem de todos os socorros que Deus fornece à Igreja.

Paulo desejava que Tito fosse para junto dele; mas os Cretenses tinham necessidade dos seus cuidados, e o apóstolo põe a chegada de Ártemas ou de Tíquico (este bem conhecido pelos serviços que prestou ao apóstolo) como condição da partida de Tito do campo onde trabalhava. Também aqui encontramos Zenas, doutor da lei, e Apolo, que tinham manifestado também a sua atividade em Éfeso e em Corinto, dispostos a irem ocupar-se em Creta da obra do Senhor.

Note-se que também encontramos dois gêneros de obreiros, a saber, aqueles que estavam em relação pessoal com o apóstolo como companheiro de trabalho, que o acompanhavam e que ele enviava a outros lugares para continuarem a obra que ele tinha começado, quando já não podia ocupar-se dela pessoalmente; e aqueles que trabalhavam de sua própria iniciativa sem terem sido enviados pelo apóstolo. Mas esta dupla atividade não arrastava consigo nenhum ciúme. Paulo não negligenciava os rebanhos que lhe eram queridos. Regozijava-se de que quem quer que fosse, são na fé, regasse as plantas que ele próprio tinha plantado. Paulo encoraja Tito a testemunhar a esses obreiros todo o seu afeto e a prover a todas as suas necessidades para a viagem. Este pensamento sugere-lhe a exortação que segue, a saber, que os Cristãos fariam bem aprendendo a fazer coisas úteis para proverem às suas próprias necessidades e às dos outros.

O apóstolo termina a sua epístola pelas saudações que o amor cristão produz sempre. Mas, como vimos já no início desta epístola, não há aqui o fervor de amizade que se encontra nas comunicações de Paulo a Timóteo. A graça é a mesma por toda a parte; mas há afeto a relações especiais na Igreja de Deus.

Tradução de “Synopsis of the books of the Bible - John Nelson Darby”

NOTAS

4) Em Grego, a palavra filantropia, nas Escrituras, só é aplicada a Deus - e tem uma força muito maior do que a palavra portuguesa, porque filos é uma afeição especial por um objeto, uma amizade.

5) A palavra grega empregada aqui não significa nascer de novo. Só encontramos esta palavra aqui e no fim do Evangelho segundo Mateus 19:28, para o milênio. A renovação do Espírito Santo é uma coisa distinta da regeneração. Esta significa a passagem de um estado de coisas a outro.

6) É porque a palavra "Cristo" se encontra no parêntese e não na frase principal que nós lemos pela Sua graça no verso 7.

7) Aqui, como noutro lugar, a responsabilidade do homem é claramente distinta da graça que salva, e pela qual também Deus cumpre os Seus desígnios.

Pensamentos: A verdadeira vida cristã consiste em não mais focalizar em si mesmo; Cristo agora é tudo para nós.
Uma evidência de um sadio estado da alma é o gozo na presença de Cristo. Tudo que desvia a nossa atenção de Cristo é uma cilada de Satanás.
O alvo da vida Cristã é conhecer mais de Cristo. E Satanás não terá influência sobre um coração que está preenchido pelo Senhor.


“Estudos sobre a Palavra de Deus” - Tito (Parte 1)


“Estudos sobre a Palavra de Deus” - Tito (Parte 1)
EPÍSTOLA A TITO CAPÍTULO 1
A Epístola a Tito ocupa-se da manutenção da ordem nas igrejas de Deus.
O fim especial das epístolas a Timóteo, embora falem de outros assuntos acerca dos quais o apóstolo dá diretrizes para o procedimento de Timóteo, era a conservação da sã doutrina. O próprio apóstolo o diz. Na primeira dessas duas epístolas vemos que Paulo tinha deixado em Éfeso o seu filho bem-amado na fé para velar para que nenhuma 0utra doutrina ali fosse pregada. A Igreja é a coluna e o sustentáculo da verdade. Na segunda epístola vemos quais são os meios a empregar para consolidar os Cristãos na verdade, quando a maioria se tem afastado.

Aqui, na sua Epístola a Tito, o apóstolo diz expressamente que tinha deixado Tito em Creta para pôr em boa ordem as coisas que ainda faltava regularizar, e para estabelecer anciãos em todas as cidades. Embora alguns perigos, mais ou menos semelhantes àqueles que encontramos mencionados na Epístola a Timóteo, se apresentem também ao seu pensamento, Paulo aborda o assunto imediatamente e com uma tranquilidade que mostra bem que o seu espírito não estava preocupado com esses perigos do mesmo modo, e que o Espírito Santo podia ocupá-lo mais perfeitamente do funcionamento da Igreja. Assim, a Epístola a Tito é muito mais simples no seu caráter. O procedimento que convém aos Cristãos acerca da manutenção da ordem nas suas relações uns com os outros e os grandes princípios sobre os quais este comportamento é fundado constituem o tema do livro. O verdadeiro estado da Igreja pouco se apresenta à nossa vista. As verdades que decorrem mais diretamente da revelação cristã e a caracterizam ocupam mais espaço nesta epístola do que nas epístolas a Timóteo. Por outro lado, as profecias acerca do futuro da Cristandade e o progresso da ruína desta, já em vias de concretização, não são repetidas aqui. Embora verificando, de maneira notável, certas verdades do Cristianismo, o tom desta epístola é mais calmo, mais comum.

Todas as três falam mais particularmente da promessa da vida. Aliás, esta promessa distingue o Cristianismo e a revelação de Deus (como Pai) em Cristo, do Judaísmo. Mas aqui, desde as primeiras palavras, os grandes princípios do Cristianismo são postos, em primeiro lugar. A fé dos eleitos, a verdade que é de harmonia com a piedade, a promessa da vida eterna antes dos tempos eternos e a manifestação da Palavra de Deus pela pregação formam o tema da introdução da epístola. Tal como nas epístolas a Timóteo, o título de “Salvador” é acrescentado ao de Deus (assim como ao de Cristo).

Esta introdução não é sem importância. O que ela encerra é apresentado pelo apóstolo a Tito como caracterizando o seu apostolado e como assunto especial do seu ministério. Este ministério não era um desenvolvimento do Judaísmo, mas sim a revelação de uma vida e de uma promessa de vida que subsistia (a saber, em Cristo, objetos dos propósitos divinos) antes dos tempos eternos. Também a fé se encontrava, não na confissão dos Judeus, mas sim nos eleitos, levados ao conhecimento da verdade pela graça. A verdadeira fé cristã era a fé dos eleitos. Verdade importante e que caracteriza a fé no mundo. Outros podem bem adotar esta fé como sistema, mas a fé é, em si, “a fé dos eleitos”. Entre os Judeus não era assim.

A confissão pública da sua doutrina e a confiança nas promessas de Deus pertencem a todo homem, israelita de nascimento. Outros, além dos eleitos, podem pretender a fé cristã, mas ela é “a fé dos eleitos”. Ela é tal, de sua natureza, que a natureza humana não a abarca, não a concebe; é uma pedra de­ tropeço para esta natureza. Revela uma relação com Deus que, por natureza, é inconcebível e, ao mesmo tempo, presunçosa e insuportável. Mas, para o eleito, esta relação é a alegria da sua alma, a luz da sua inteligência e o amparo do seu coração. A fé coloca-o numa relação com Deus que é tudo o que o coração do eleito pode desejar, mas dependendo inteiramente daquilo que Deus é – é isto o que o crente deseja. É uma relação pessoal com o próprio Deus – e é por isso que é a fé dos eleitos de Deus. Por conseguinte ela é para todos os Gentios, do mesmo modo que para os Judeus. Esta fé dos eleitos de Deus tem um caráter íntimo, em relação com o próprio Deus. Assenta sobre Ele, conhece o segredo do Seu propósito eterno, desse amor que fez dos eleitos o objeto dos desígnios divinos. Mas um outro caráter se liga a esta fé, a saber, a confissão diante dos homens. Existe a verdade revelada pela qual Deus Se faz conhecer e requer a submissão do espírito do homem e a homenagem do seu coração. Esta verdade coloca a alma numa verdadeira relação com Deus – é a verdade segundo a piedade.

A confissão da verdade é, pois, um caráter importante do Cristianismo e do Cristão. Existe no coração a fé dos eleitos, a fé pessoal em Deus e no segredo do Seu amor, e a confissão da verdade. Ora, o que constituía a esperança desta fé não eram os bens da Terra, uma posteridade numerosa, a bênção terrestre de um povo reconhecido de Deus como Seu; era a vida eterna, promessa de Deus em Cristo antes dos tempos eternos, uma vida fora do mundo, do governo divino do mundo e do desenvolvimento do caráter do Eterno nesse governo.

Era a vida eterna. E esta vida está em relação com a natureza e com o carácter do próprio Deus; é uma vida que, tendo a sua origem em Deus, vindo de Deus, era o pensamento da Sua graça, e tinha sido assim declarada em Cristo, ainda antes de haver mundo, no qual o primeiro homem foi introduzido sob uma responsabilidade (1) e para que formasse a esfera da manifestação do governo de Deus sobre aquilo que Lhe estava submetido – coisa bem diferente da comunhão de uma vida pela qual se participa da Sua natureza e que é o seu reflexo. É esta a esperança do Evangelho (porque nós não falamos aqui da Igreja), o secreto tesouro da fé dos eleitos, aquilo de que a verdade revelada nos assegura.

A expressão: “Prometida antes dos tempos eternos” é uma expressão notável e importante: Fomos admitidos nos pensamentos de Deus antes de esta cena instável e mesclada ter existido – esta cena, testemunha da fraqueza e do pecado da criatura, da paciência e dos caminhos de Deus em graça e em governo. A vida eterna refere-se à natureza imutável de Deus, aos Seus desígnios, que permanecem firmes como a Sua natureza, às Suas promessas, nas quais Ele não poderia enganar-nos, e às quais Ele não poderia faltar. A nossa parte na vida existia ainda antes da fundação do mundo, não só na Pessoa do Filho, mas também nas promessas que Lhe tinha feito como nossa porção n ‘Ele. Esta vida, e a porção que nós devíamos ter nela, constituíam o tema das comunicações do Pai ao Filho, de que nós éramos os objetos, sendo o Filho o depositário (2). Maravilhoso conhecimento que nos foi dado das comunicações celestiais de que o Filho era o objeto, para que compreendêssemos a parte que temos nos pensamentos de Deus, de que éramos o objeto em Cristo antes de todos os séculos!

Por esta passagem compreendemos também mais claramente o que é a Palavra de Deus. É a comunicação, no tempo, dos eternos pensamentos do próprio Deus em Cristo. Ela encontra o homem sob o poder do pecado, revela a paz e a libertação, e mostra como se pode ter parte nos frutos dos pensamentos de Deus; mas esses mesmos pensamentos não são outra coisa senão o desígnio, o propósito eterno da Sua graça em Cristo, de nos dar a vida eterna em Cristo, uma vida que já existia na presença de Deus antes dos tempos eternos. A Palavra de Deus é pregada, é manifestada, isto é, a revelação dos pensamentos de Deus em Cristo. Ora, esses pensamentos dão-nos a vida eterna em Cristo ­e a promessa desta vida foi feita antes dos séculos. Os eleitos, crendo, sabem isso e possuem a própria vida, têm o testemunho, em si mesmos. Mas a Palavra de Deus é a revelação pública em que a fé se funda e tem autoridade universal sobre a consciência dos homens, tanto daqueles que a recebem como daqueles que não a recebem. Exatamente como em 2 Timóteo 1:9-10, ela é apresentada como sendo a salvação, mas tendo sido então manifestada.

Notar-se-á aqui que “a fé” é a fé pessoal numa verdade conhecida, a fé que só os eleitos que possuem a verdade podem ter, tal como Deus a ensina. A expressão “a fé” é também empregada na Palavra de Deus para o Cristianismo como sistema, em contraste com o Judaísmo. Aqui, “a fé” é o segredo de Deus em contraste com uma lei promulgada para um povo estrangeiro. Esta promessa, datando de antes dos séculos revelados e sendo soberana na sua aplicação, estava particularmente confiada ao apóstolo Paulo, para que ele a anunciasse pela pregação (verso 3).

Podemos considerar o Evangelho confiado a Pedro a proclamação do cumprimento das promessas feitas aos pais, as quais Paulo também reconhece, com os fatos evangélicos que confirmavam essas promessas e as desenvolviam pelo poder de Deus, manifestado na ressurreição de Jesus, testemunha do poder dessa vida.

Enquanto que João nos apresenta a vida na Pessoa de Cristo, sendo-nos em seguida comunicada – uma vida cujos traços característicos ele nos apresenta. Veremos que não há, no apóstolo, a mesma confiança íntima com Tito que havia com Timóteo. Paulo não abre o seu coração a Tito da mesma maneira que o abria a Timóteo. Tito é um bem-amado e fiel servo de Deus, também filho do apóstolo, na fé; mas Paulo não lhe abre o seu coração da mesma maneira, não lhe comunica as suas queixas, a sua inquietação, não desabafa com ele como o faz com Timóteo. Dizer a uma pessoa tudo o que se vê de inquietante, de destruído na obra em que se trabalha, é uma prova de confiança. Tem-se confiança a respeito da obra, mas falamos também da obra a nosso respeito, a respeito de todos; deixamo-nos ir sem reservas e com toda a liberdade a falar de nós, do que sentimos, de tudo. É o que o apóstolo faz com Timóteo e aquilo de que o Espírito Santo nos quis dar o quadro. Nas suas comunicações a Timóteo, era a doutrina que preocupava o apóstolo, acima de tudo. Era por ali que o Inimigo atacava e se esforçava por arruinar a Igreja.

Os vigilantes (presbíteros ou bispos) são, no pensamento de Paulo, como que uma coisa acessória, quando se dirige a Timóteo; mas aqui coloca-os na primeira linha. O apóstolo tinha deixado Tito em Creta para pôr em boa ordem as coisas que restavam por regularizar, e para estabelecer anciãos (3) em cada cidade, conforme já lhe tinha ordenado. Não se trata aqui do desejo que alguém pudesse ter de vir a ser bispo. Também se não trata de descrever o caráter que convinha a esse cargo; trata-se, sim, de estabelecer bispos, tarefa para cujo cumprimento Tito estava munido de autoridade da parte do apóstolo. São-lhe, no entanto, comunicadas as qualidades necessárias para que ele possa decidir, de harmonia com a sabedoria apostólica. Assim, por um lado, ele estava revestido da autoridade concedida pelo apóstolo para os estabelecer, e, por outro, estava instruído acerca das qualidades requeridas para tal. A autoridade e a sabedoria apostólicas concorriam assim juntas para tornarem Tito capaz de cumprir essa importante e tão séria obra.

Vê-se também que este delegado apostólico estava autorizado a pôr em ordem o que fosse necessário para o bem-estar das assembleias em Creta. Essas assembleias, já fundadas, ainda careciam de orientação sobre muitos pormenores acerca do seu funcionamento; e os cuidados apostólicos eram necessários para lhes dar diretrizes, assim como para o estabelecimento de responsáveis no seu seio. O apóstolo tinha confiado essa tarefa à fidelidade aprovada de Tito, munido verbalmente, e, aqui, por escrito, da autoridade do próprio apóstolo; de sorte que rejeitar Tito é rejeitar o apóstolo, e, por conseguinte, o Senhor que o tinha enviado. A autoridade na Igreja de Deus é uma coisa séria, uma coisa que vem do próprio Deus. Pode ser exercida como influência pelo dom de Deus, por responsáveis, quando Deus os estabelece por meio de instrumentos que Ele escolheu e enviou com esse fim.

É inútil entrar aqui no pormenor das qualidades que são necessárias para preencher convenientemente o cargo de vigilante ou bispo. Elas são, no fundo, as mesmas que as mencionadas na Primeira Epístola a Timóteo. São qualidades, e não dons – qualidades exteriores, morais e de circunstâncias, que demonstrem a aptidão do indivíduo para o cargo de vigiar os outros. Talvez possamos admirar-nos de que a ausência de faltas graves encontre lugar na lista dessas qualidades, mas, naquele tempo, as assembleias eram mais simples do que se pensa; as pessoas que as compunham tinham saído recentemente dos hábitos mais deploráveis. Um comportamento precedente, que comandasse o respeito dos outros, era, por conseguinte, necessário para dar peso ao exercício dos cuidados de vigilante. Os que estavam revestidos desse cargo deviam também poder refutar os contraditores, porque os encontrariam, e mais particularmente entre os Judeus, que estavam sempre e por toda a parte ativos para se oporem à verdade, e sutis para perverterem os espíritos.

O caráter dos Cretenses ocasionava outras dificuldades e exigia o exercício de uma autoridade incontestável. O Judaísmo mesclava-se neles com o efeito do caráter nacional. Era preciso ser firme e agir com autoridade para que os Cretenses Cristãos permanecessem sãos na fé.

De resto, tratava-se ainda de ordenanças e de tradições interditas na Igreja de Deus, porque O provocavam ao zelo e se opunham à Sua graça, exaltando o homem. Isto, dizíamos, não é puro, e aquilo é proibido por uma ordenança, ­mas Deus quer o coração. Todas as coisas são puras para aqueles que são puros; aquele que tem o coração maculado não precisa sair de si mesmo para encontrar impureza, mas é cômodo para ele fazê-lo a fim de poder esquecer a sua desonestidade. Os seus pensamentos e a a sua consciência estão já corrompidos. Professam conhecer a Deus, mas negam-No por suas obras; são inúteis e reprovados para o que concerne a toda a obra verdadeiramente boa.

Continua em “Estudos sobre a Palavra de Deus” - Tito (Parte 2)

Tradução de “Synopsis of the books of the Bible - John Nelson Darby”

NOTAS

1) A história do primeiro homem é a sua falta a esta responsabilidade até a vinda de Cristo, o segundo Homem, e a Cruz sobre a qual Cristo levou por nós as consequências dessa falta e nos obteve ao pé de Si a vida eterna, em toda a glória dessa vida.

2) Ver Provérbios 8:30-31; Lucas 2:14 e o Salmo 40:6-8, "abriste os meus ouvidos", quer dizer "formaste um corpo", o lugar da obediência, ou de um servo (Filipenses 2), assim traduzido pelos Setenta e aceite como correto na epístola aos Hebreus.

3) Como foi dito já as palavras ancião, presbítero ou bispo tinham, naquele tempo, significo idêntico. As diferenças hoje consideradas por alguns foram estabelecidas muito mais tarde (Nota do Tradutor).