"Amados, quando empregava toda a
diligência em escrever-vos acerca da nossa comum salvação, foi que me senti
obrigado a corresponder-me convosco, exortando-vos a batalhardes,
diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos” (Judas
3).
Introdução
A epístola que temos diante de nós,
embora breve, abrange um vasto período histórico. Apresenta-nos a apostasia do
cristianismo, desde os primeiros fundamentos do mal - que se introduziram entre
os crentes já no tempo dos apóstolos - até o dia em que o juízo definitivo caia
sobre a cristandade. Esta epístola nos mostra a forma em que a Igreja,
abandonando as verdades que Deus lhe confiou, tem progredido na impiedade, a
que terá seu auge na negação do Pai e do Filho. Nesta época, ainda futura, as
trevas morais substituirão a luz do Evangelho que atualmente ainda ilumina o
mundo. Todavia, vemos já em ação, nos dias de hoje, todos os fundamentos que
caracterizam essa apostasia. E a epístola de Judas nos ensina qual é a atitude
que todo crente deve adotar em nossos tempos em relação ao mal e como pode
glorificar a Deus nestas tristes circunstâncias. Pois não nos esqueçamos: num
tempo de ruína o crente pode glorificar a Deus de uma maneira tão completa como
nos dias mais prósperos da Igreja primitiva. As circunstâncias mudaram, sem
dúvida, mas ainda Deus pode ser honrado pelos seus, de outras maneiras, porém,
de forma tão real como quando o Espírito caiu sobre os discípulos em
Pentecostes. Atualmente Deus não nos pede que reedifiquemos o estado de coisas
que está arruinado por nossa culpa, nem que nos comportemos no meio da
cristandade como se tudo estivesse em ordem, fechando os olhos diante da
decadência, mas mostra o caminho que nos guia entre as ruínas, uma vereda
aprovada e conhecida por Ele, uma vereda que o olho da águia não conseguiu jamais
descobrir, mas que a fé ensina a discernir.
Versículos 1-2: “Judas, servo de
Jesus Cristo e irmão de Tiago, aos chamados, amados em Deus Pai e guardados em
Jesus Cristo, a misericórdia, a paz e o amor vos sejam multiplicados.”.
Notemos em primeiro lugar a forma geral
em que Judas caracteriza os crentes aos quais escreve. As outras epístolas se
dirigem a eles com palavras muito diferentes; é certo que nelas por duas vezes
são nomeados “santos chamados”, quer dizer, santos por vocação, porém somente “chamados”
não ocorre nem uma vez, exceto aqui. Quando Deus quer adquirir uma alma para Si
começa por chamá-la. Foi o que fez com Abraão, o pai dos crentes, e não podia
dar aos filhos de Deus um caráter mais geral que este. Abrange a todos, pois
são “chamados”,sem nenhuma exceção. Não encontramos acaso uma evidente
advertência nisso? Esta epístola, que trata do tempo atual, se dirige atodos os
filhos de Deus, sem excluir nenhum, não considerando o modo de andar ou os
conhecimentos e sem ter em conta o que poderia dividi-los. Todos, pois, são
responsáveis por escutá-la e adequar-se a ela; daí esse termo chamados,
tão amplo e individual ao mesmo tempo. Quando um apóstolo se dirigia a uma
assembleia local, mais de um crente que não fosse parte dela poderia (sem
dúvida, com pouquíssimo conhecimento a respeito) considerar-se sem obrigações
de cumprir todo o conteúdo da epístola; com Judas, uma ideia semelhante seria
imperdoável. Cada um dos membros da família de Deus, neste mundo, deve dizer:
“Aqui o Senhor se dirige pessoal e individualmente a mim”. Podemos notar que
duas coisas dão a esses “chamados” uma certeza absoluta no que se refere a suas
relações com Deus. São “amados em Deus Pai e guardados em Jesus Cristo”.
Jamais deveria haver na grande família de Deus nenhuma só alma que
duvidasse de suas relações com o Pai e que não tivesse a certeza de sua
salvação. Os que duvidam d’Ele, que meditem nestas palavras. O amor do Pai por
nós é tão perfeito como seu amor para Jesus Cristo, seu Amado; por isso nos
disse: “Amados em Deus Pai”. Nossa segurança é tão perfeita como a de Jesus
Cristo; pelo que também nos disse: “Guardados em Jesus Cristo”. Se a salvação
dos chamados dependesse de fidelidade, nenhum deles chegaria ao fim de sua
carreira. Assim como não podemos nos salvar, tampouco podemos nos manter. Nossa
segurança eterna está garantida, não porque sejamos fiéis, mas porque o Deus de
amor nos vê como vê a Cristo.
Misericórdia e testemunho individual.
A saudação do apóstolo tem grande
importância. Nas epístolas dirigidas a Timóteo, a palavra “misericórdia” faz
parte da saudação, mas em nenhuma epístola dirigida a um grupo de crentes
existe esta palavra. É que a misericórdia é uma coisa necessária, não a uma
coletividade, mas a cada crente individualmente. Eu sou um pobre
ser débil, falho de muitas formas, exposto a contínuos perigos. Meu estado
desperta a piedade divina, a que vem em meu socorro, me adverte e se interessa
por todos os detalhes do meu andar aqui na terra. Tal é o caráter da
misericórdia. Porém aqui, uma epístola coletiva, dirigida sem
distinção a todos os chamados, invoca sobre eles a misericórdia. Como explicar
este fato incomum? Por uma séria razão de que, em um tempo de ruína, o testemunho
cristão toma um caráter cada vez mais individual. Isto não significa de maneira
alguma, como se ouve dizer às vezes de crentes desanimados diante da rápida
invasão do mal, que o testemunho cristão não pode ter mais o caráter coletivo
de uma reunião de santos. Os que assim falam estão em um grande erro, e a
epístola de Judas o prova. Ela menciona pessoas que se introduziram
encobertamente entre os fiéis e que são manchas no meio deles; isso indica,
pois, que existe uma reunião de santos. Porém, o ensino que recebemos aqui é
que nós somos chamados, na presença do terrível estado moral da cristandade, a
sermos mais e mais fiéis em nosso testemunho individual, pois Deus toma conta
dele de maneira especial. Sem dúvida é um privilégio imenso, para o coração de
crentes inteligentes, poder, em comunhão, gozar da mesa do Senhor, sinal por
excelência do testemunho coletivo e proclamação da unidade do Corpo de Cristo
em um tempo em que esta unidade está esmagada na cristandade professante. Que
este testemunho se encontra na atualidade em um estado de debilidade extrema,
comparado com o que foi no passado, não é preciso dizer, mas, no entanto, Deus
toma conta dele, pois tudo o que existe de mais elevado no cristianismo,
o culto, se relaciona com a reunião de seus filhos em separação do
mundo. Porém, sobre o que insistimos é que, se nosso testemunho coletivo pode
ser de tal maneira empobrecido que se restrinja à reunião de dois ou três ao
redor do Senhor, o testemunho individual não deveria sofrer tais obstáculos.
Pode ser tão poderoso como quando o Espírito Santo enchia individualmente aos
cristãos no alvorecer da Igreja. O poder do Espírito Santo no indivíduo não
está agora mais limitado que naquele tempo, sempre que cuidamos de não
contristar este hóspede divino em nosso andar, em momentos em que o caráter
mundano e a infidelidade da Igreja – em uma palavra, sua ruína – restringem
necessariamente a operação do Espírito na Assembleia. Um testemunho individual
mantido com fidelidade no tempo presente e uma santa separação do mal em todas
as suas formas são tanto mais necessários quando, por causa da iniquidade
dominante na Igreja, não podemos encontrar muito apoio e socorro em nossos
irmãos. Porém, sempre nos permanece o Senhor e podemos contar por inteiro com
ele.
Sobre a apostasia
Aqui muitos cristãos se sentirão
tentados a me interromper. Nos fala – dirão - dos progressos do mal, do estado
de ruína da cristandade, da proximidade do juízo. Parece que de propósito
aparta os olhos de todo bem que se realiza a seu redor, da atividade de nossas
igrejas, do esforço considerável de amor e solidariedade que atualmente
caracteriza o mundo cristão, das imensas somas empregadas para antecipar o
reino de Deus. Encontro-me longe de negar tudo o que a fé produz
nos filhos de Deus, porém Deus não considera o estado da cristandade como vocês
e o mundo consideram. Ele julga o estado dos homens segundo o comportamento
deles com relação a Seu Filho e às escrituras que O revelam, e não
seriam vocês sinceros se pretendessem negar que o ambiente professante do qual
fazem parte se encaminha rapidamente para o abandono da Palavra e a negação do
Filho de Deus. Este caráter do juízo de Deus se afirma desde o princípio até o
fim das Escrituras. É o estado moral do mundo frente a Deus o
que nos dá a medida do Seu juízo; não são seus progressos materiais nem a
avaliação que de si mesmo têm, nem o grau de consagração que se atribui. A
apostasia completa consiste na negação do Pai e do Filho e é o que, entre
outras, a epístola de Judas, a segunda de Pedro e a primeira de João põem em
evidência. Satanás tem mil maneiras de separar os homens de Deus, iludindo-os,
nutrindo seu orgulho e ocupando-os com seu próprio progresso.
Paz, amor e graça em atividade
“A paz e o amor vos sejam
multiplicados” (v. 2). Queridos irmãos e irmãs, eis aqui o desejo do
apóstolo para todos nós. Aqui não fala da paz com Deus e de Seu amor, aos quais
nada há que acrescentar, mas que deseja que na prática os experimentemos.
Conhece as dificuldades dos crentes nestes últimos dias, nos quais o mundo está
caracterizado, de uma parte, por uma crescente e perpétua agitação e, de outra
pela frieza de todos os afetos legítimos e pelo egoísmo que prevalece sobre
todas as outras considerações. “O amor vos seja multiplicado”. Eu creio,
queridos amigos, que se nos dias atuais os “chamados” do Senhor recebessem em
seus corações o que o Espírito de Deus lhes deseja aqui, todos seriam boas
testemunhas de Jesus Cristo. O inimigo procura esfriar a todo custo o amor que é
o vínculo entre os filhos de Deus. Não deve conseguir! Não nos é muito difícil
ver o mal, mostrá-lo, detalhá-lo nos outros; porém, mostrar o mal é um remédio?
Não, é o amor que cura, o que levanta e ergue a nossos irmãos na marcha. A
graça ganha o coração. A severidade pode reprimir o mal, porém jamais alcançou
alguém. Se for assim para com nossos irmãos, o mesmo é para o Evangelho
anunciado ao mundo. A graça atrai, atua sobre a consciência, produz o
arrependimento, conduz para Cristo e, se é necessário dizer ao homem a verdade
e fazê-lo compreender seu estado de afastamento de Deus, é ainda a graça que
põe a descoberto este estado para corrigi-lo, pois a graça e a verdade vieram
por Jesus Cristo. Em um tempo no qual o amor de um grande número de cristãos se
esfriou e a iniquidade prevalece, não temos necessidade de que o amor nos seja
multiplicado?
Versículo 3: “Amados, quando
empregava toda a diligência em escrever-vos acerca da nossa comum salvação, foi
que me senti obrigado a corresponder-me convosco, exortando-vos a batalhardes,
diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos”.
Agora o Apóstolo aborda o tema de sua
epístola. Não nos surpreende a seriedade e a solenidade deste início? Seu
primeiro intento havia sido pegar a pena, cheio como estava do grande desejo de
apresentar-lhes um tema que sempre será motivo de gozo para os resgatados: “a
comum salvação”. Antes de tudo ele quis que os crentes gozassem, em comunhão
uns com os outros, das maravilhas da obra do Salvador..., porém, a pena cai de
suas mãos. O que aconteceu? Surgiram perigos, e aqueles pobres cristãos talvez
não se deram conta. Era urgente adverti-los, a fim de que não dormissem numa
perigosa inércia. O apóstolo abandonou, pois, seu primeiro intento, tomou de
novo a pena e os exortou a combater pela fé.
Manter uma doutrina imutável
Amados irmãos! Esta exortação é hoje
mais atual do que era então. A guerra está declarada, o inimigo está em
campanha. Os perigos ameaçam vocês em todo lugar. Toda sorte de ciladas lhes é
estendida, a falsidade os rodeia. Pode ser que as ovelhas do Senhor não estejam
em guarda contra os estranhos que vêm a elas com discursos perfeitos e palavras
lisonjeiras com intenção de destruir os fundamentos de sua fé. Pode ser que não
tenham o coração suficientemente simples para estarem sujeitos unicamente à voz
do Bom Pastor. O apóstolo decidiu nos escrever. Trata de nos despertar, de nos
levantar, de combater contra o poder do mal que nos rodeia. Qual é o estandarte
que devemos levantar? “A fé que uma vez por todas foi dada aos santos”
Em uma quantidade de passagens que
seria longo enumerar, vemos que “a fé” nos é aqui o dom de Deus situado no
coração e que nos faz capaz de alcançar a salvação: A fé é o conjunto
de doutrinas cristãs ensinadas aos santos, doutrinas das quais se apropriam
pela própria fé. Nesse contexto, o que caracteriza o mal, nos últimos dias,
é o abandono destas doutrinas.
Notem bem estas palavras: uma
vez. Este ensino tem lugar uma vez; é imutável, isto é, não tem sofrido
nenhuma modificação. Quando Judas escrevia, falava desse ensino como
pertencente ao passado; tratava-se do que havia aprendido os primeiros cristãos
pela palavra dos apóstolos. Temos esse ensino agora na Palavra. Deus tem tido o
cuidado de registrá-la para nós nas Santas Escrituras e fora dela não existe
nada em nenhum outro lugar. Quanto desejaria poder convencê-los, amados, que o
grande trabalho que nos cabe hoje é manter com mão firme a bandeira que nos foi
confiada, ao redor da qual devem agrupar-se todos os “chamados”, sem exceção,
divisa sobre a qual estão escritos dois nomes que formam só um: a
palavra de Deus e o Senhor Jesus Cristo.
Reter firmemente os ensinamentos
originais
Quando nos encontramos em luta contra o
mal moral que aumenta a cada instante no mundo, que estende por todos os
lugares a infidelidade e a incredulidade e, o que é até mais perigoso, que
invoca a razão para destruir a verdade, não pensem que seja preciso nos
empenhar em muitas discussões. Somos demasiadamente inaptos para semelhante
tarefa, e estou convencido que, em nosso estado de fraqueza, não somos mesmo
capazes disso. Nos tempos da Reforma, e até no século passado, a discussão, sem
convencer aos adversários, podia fortificar as almas dos crentes nas lutas
contra o inimigo, mas em vista de nossa pouca força, nosso papel atual é,
diante de tudo, não nos deixarmos desviar das coisas que têm sido ensinadas uma
vez aos santos e retê-las firmemente. Nisto consistia a luta de Filadélfia:
“Guarda o que tens”, disse o Santo, o Verdadeiro (Apocalipse 3:11). Não pense
você que isto exige amplos conhecimentos e inteligência; só se precisa uma
coisa muito simples: o amor por Cristo, e o mais ignorante entre nós pode
possuí-lo. Se o Senhor ocupa, em nossos corações, o lugar que Lhe é devido, por
certo conseguiremos a vitória, pois Satanás nada pode contra ELE e manteremos a
fé que tem sido dada uma vez aos santos, pois só ela tem ao Senhor por objeto.
Podemos ver por esta epístola que, no tempo em que o apóstolo escrevia, a
divisão, que já moralmente estava presente na Igreja, não era ainda fato
consumado. Ela só teve lugar depois do desaparecimento do último apóstolo,
porém, Judas prevê e anuncia o que ia suceder e adverte, como o temos visto, ao
conjunto da família de Deus, tanto em seu aspecto mais restrito como no mais
amplo, a fim de que nem um só crente possa esquivar-se de seu dever quando se
trata de repelir os ataques contra a fé. Devemos notar que o estado dos
crentes, aos quais o apóstolo escrevia, estava muito longe de responder ao que
deveria ter sido. Assim disse: “Quero, pois, lembrar-vos, embora já estejais
cientes de tudo uma vez por todas”. Encontravam-se a ponto de
esquecer estas coisas em outro tempo muito conhecidas e que lhes haviam sido
ensinadas uma vez no princípio. Haviam recebido a unção do Espírito Santo, pela
qual sabiam todas estas coisas, porém, sua fé estava debilitada, seus
pensamentos haviam se desviado para o mundo; por isso Judas sentia a
necessidade de lembrar-lhes a que se referia a cena para a qual dirigiam seus
olhares de concupiscência. Deste modo o apóstolo Pedro, em sua segunda
epístola, sentia a necessidade de despertar os crentes descuidados,
lembrando-lhes estas coisas (2 Pedro 1:13). E nós? Pensamos acaso que não
é tempo de que nos sejam lembradas? Temos despertado de nosso sono? A
trombeta para ir ao combate faz tempo que soou. Para nos reunir ao redor da
bandeira esperaremos que o inimigo nos surpreenda indefesos e nos derrube, para
vergonha do glorioso Chefe que nos conduz? Queira Deus que as palavras do
apóstolo penetrem em nossos ouvidos: “Desperta, ó tu que dormes, levanta-te
de entre os mortos, e Cristo te iluminará” (Efésios 5:14).
Resistir ao mal
A segunda parte da epístola de Judas
(versículos 5-16), nos descreve o mal que caracteriza os últimos dias. Sinto na
alma que o tema que nos ocupa não seja nem edificante nem nos traga gozo, porém
em certos momentos, Deus nos conduz à beira de um precipício e nos convida a
dar uma olhada. Esta olhada é muito saudável, quando, como Ló, temos sido seduzidos
pela aparência perfeita das planícies do Jordão. Recordemos somente que se
trata de resistir ao mal, nada nos capacita tanto para refletir. Veremos que “toda
a armadura de Deus” (Efésios 6:11), para resistir no dia mal, consiste,
diante de tudo, em um bom estado da alma e que a vitória
depende por inteiro disto. As simples palavras não conduzem à vitória, mas sim
uma vida consagrada a Cristo e passada em sua comunhão.
Versículo 4: “Pois certos
indivíduos se introduziram com dissimulação, os quais, desde muito, foram
antecipadamente pronunciados para esta condenação, homens ímpios, que
transformam em libertinagem a graça de nosso Deus e negam o nosso único
Soberano e Senhor, Jesus Cristo.”
Estes homens haviam se infiltrado entre
os irmãos e introduziram “heresias destruidoras” (2 Pedro 2:1). Porém, a
palavra nos revela em relação a eles que em tempos antigos, estes homens, que
apareceram muito tempo depois, “haviam sido destinados para esta condenação”.
Este termo não significa de maneira alguma que Deus os houvera predestinado à
condenação eterna, grave erro que formava parte da doutrina de Calvino. Esta
passagem quer dizer que Deus havia falado de antemão destes homens maus
do fim e havia proclamado desde a antiguidade a carga que pesaria
sobre os mesmos, a eterna condenação. A primeira vez que um profeta (Enoque)
foi trazido à vida no mundo, anunciou que uma acusação recairia sobre os
malvados de nossos dias, a qual traria a eterna condenação de um terrível juízo
sobre os tais. Tomara que abram em tempo os olhos para que possam notar a sorte
que os ameaça e conhecer o horror que Deus tem das doutrinas que têm inventado,
horror provado pelo fato de que já desde o princípio do mundo, antes do
dilúvio, condenou estes ensinamentos nocivos que tão amplamente vemos
divulgados em nossos dias.
Duas características do mal
Estes homens são “ímpios, que
transformam em libertinagem a graça de nosso Deus e negam o nosso único
Soberano e Senhor, Jesus Cristo”. Duas características do mal são
assinaladas aqui, para que possamos conhecê-las facilmente. Estes ímpios dos
quais fala o apóstolo, são os homens de nossos dias que não nasceram sob o
regime da lei, mas sob a graça. O que fazem estas pessoas com tal graça? A
menosprezam e não consideram as obrigações morais que lhes impõem e aproveitam
a mesma para se entregarem a uma corrupção desenfreada. A segunda
característica dos ímpios é que “e negam o nosso único Soberano e Senhor,
Jesus Cristo”. Este termo se repete várias vezes no curso desta epístola. A
Palavra não nos diz que os ímpios neguem a pessoa de Cristo,
mas que negam o Seudomínio, quer dizer, não aceitam Sua autoridade, e
isto é o que caracteriza a cristandade antes do desenrolar final da apostasia.
Estes homens só buscam a autoridade em si mesmos e no que chamam sua
consciência. É a “iniquidade” de que fala I João 3:4, a vontade própria ou
a rejeição de toda a lei fora de si mesmo, já que cada qual é a lei para si.
Os direitos de Cristo são assim
pisoteados. Sua Palavra não serve de regra. Cada qual é livre para julgá-la,
tomar dela o que lhe convém e rejeitar o que não lhe convém. Não nos esqueçamos
que estes “ímpios” professam frequentemente a maior admiração e o mais profundo
respeito pela pessoa de Cristo, embora rejeitem Seu senhorio. Diante da Palavra
que O revela, se reservam o direito e a autoridade de julgar, coisa que somente
corresponde a Deus. Sua religião é, pois, a exaltação do homem e o será cada
vez mais, até o dia em que se revele “homem da iniquidade... a ponto de
assentar-se no santuário de Deus, ostentando-se como se fosse o próprio Deus”.
(II Tessalonicenses 2:3-4)
Versículo 5: “Quero,
pois, lembrar-vos, embora já estejais cientes de tudo uma vez por todas, que o
Senhor, tendo libertado um povo, tirando-o da terra do Egito, destruiu, depois,
os que não creram”.
Depois de haver mostrado as duas
características dos ímpios – o abandono da graça e a rejeição da autoridade do
Senhor – o apóstolo passa ao juízo do mal, porém, estabelece em primeiro lugar
que, da parte de Deus, nenhum recurso havia faltado ao homem. A história do
povo de Israel dava testemunho disso; Deus o havia livrado da terra do Egito
mediante a redenção; por que, pois, este povo foi destruído no deserto?
Porque não tinha crido; a falta de fé era a causa de seu juízo,
pois não há benção real separada da fé.
Versículo 6 -7: “e a anjos,
os que não guardaram o seu estado original, mas abandonaram o seu próprio
domicílio, ele tem guardado sob trevas, em algemas eternas, para o juízo do
grande Dia; como Sodoma e Gomorra, e as cidades circunvizinhas, que, havendo-se
entregado à prostituição como aqueles, seguindo após outra carne, são postas
para exemplo do fogo eterno, sofrendo punição.”.
Da mesma forma que foi para Israel, a
incredulidade da cristandade professante é o motivo de seu juízo; porém, antes
de tudo, o apóstolo quer caracterizar a apostasia, consequência desta
incredulidade e os juízos que a esperam. Seja como for, o abandono de nossa
origem é a apostasia. O apóstolo faz referência a acontecimentos misteriosos
relatados em Gênesis e que a Palavra deixa ocultos na escuridão, como os anjos caídos
que os têm provocado. Não cabe a nós levantar este véu, porém o que
sabemos é que o juízo do grande dia alcançará a estes espíritos corrompidos,
como o juízo do fogo alcançou às cidades profanas de Sodoma e Gomorra que
haviam agido da mesma maneira que eles. Encontramos aqui, pois, duas classes de
juízo: um futuro e outro imediato e definitivo; um sob a escuridão, em cadeias,
para alcançar a sentença do tribunal divino, outro atual, pelo fogo, que é
eterno.
Versículos 8 - 9 “Ora, estes, da
mesma sorte, quais sonhadores alucinados, não só contaminam a carne, como
também rejeitam governo e difamam autoridades superiores. Contudo, o arcanjo
Miguel, quando contendia com o diabo e disputava a respeito do corpo de Moisés,
não se atreveu a proferir juízo infamatório contra ele; pelo contrário, disse:
O Senhor te repreenda!”
Judas passa agora aos malvados que
viviam em seu tempo e cujo caráter irá piorando cada vez mais até o juízo
final. Os chama de “sonhadores”, pessoas que, ao invés de serem conduzidas pela
verdade o são por uma imaginação que não conhece regras. A partir do momento em
que o homem abandona a Palavra de Deus não há nenhuma razão impedindo que ele
se entregue à injustiça e às fábulas. Esses sonhadores têm duas características
já mencionadas no versículo 4: censuram a carne, menosprezam e criticam as
autoridades superiores. O menosprezo do Senhorio de Cristo tem por consequência
fatal uma atitude injuriosa a respeito das autoridades, enquanto que o cristão,
que reconhece a autoridade do Senhor, não tem nenhum problema em submeter-se
àqueles que são instituídos por Ele. Assim, sejam estes homens juízes sem
moralidade ou tiranos sanguinários, o crente se submete a eles, a não ser
naquilo que a obediência a Deus tenha primazia sobre aquela que é devida aos
homens. Mesmo o arcanjo Miguel não ousou proferir juízo de maldição contra
Satanás, que queria apoderar-se do corpo de Moisés, sem dúvida para seduzir
novamente o povo conduzindo-o à idolatria.
Versículos 10-11: “Estes,
porém, quanto a tudo o que não entendem, difamam; e, quanto a tudo o que
compreendem por instinto natural, como brutos sem razão, até nessas coisas se
corrompem. Ai deles! Porque prosseguiram pelo caminho de Caim, e, movidos de
ganância, se precipitaram no erro de Balaão, e pereceram na revolta de Coré”.
A Palavra “estes” ocupa um lugar
muito importante nesta curta epístola. Caracteriza os homens que se levantam
contra Deus, nos dias de Judas, nos nossos e até o momento da vinda do Senhor
em juízo. Estes homens, pois, existem em nossos dias. Pedro, em sua segunda
epístola, os qualifica da mesma maneira: “Esses, todavia, como brutos
irracionais, naturalmente feitos para presa e destruição, falando mal daquilo
em que são ignorantes, na sua destruição também hão de ser destruídos”
(capítulo. 2:12).
Com que termos de menosprezo o Espírito
de Deus trata àqueles que ousam levantar-se contra Deus, àqueles que se
orgulham de sua inteligência e se rebaixam ao nível de animais irracionais,
pois os insensatos supõem que o homem que evita a Deus pode ser inteligente!
Ai deles!
O apóstolo acrescenta: “Ai deles!”
pois por um lado provocam o menosprezo de Deus e por outro trazem juízo contra
si. O Senhor pronunciou ais contra os habitantes de Jerusalém
e contra as cidades da Galileia: todos os profetas do Antigo Testamento também
o fizeram contra o povo judeu e as outras nações; porém aqui, como em
Apocalipse 8:13, o ‘ai’ é pronunciado a respeito da cristandade. É um“ai” mais
terrível que o de outros tempos, pelo motivo dos superiores privilégios
concedidos às nações cristãs. O que lhe parece? Você crê nisso? Há sentido na
desgraça que pesa sobre este mundo cristianizado no meio do qual você vive? “Ai
deles! Porque prosseguiram pelo caminho de Caim, e, movidos de ganância, se
precipitaram no erro de Balaão, e pereceram na revolta de Coré”.
Encontramos neste versículo três exemplos que nos descrevem o progresso do mal
desde seu início até a apostasia, três passos que conduzem o homem à rebelião
final contra Deus e contra Cristo.
Caim: a justificação pelas obras.
O primeiro caso é o de Caim. A religião
de Caim não admite que a maldição de Deus pese sobre o homem e
sobre o mundo por causa do pecado. Caim se apresenta diante de Deus com a ideia
ilusória de que um pecador pode por si mesmo agradar a Deus. Por isso apresenta
seu melhor trigo, fruto do seu trabalho e de seus esforços, como um sacrifício
a Deus. Esta religião natural, princípio da apostasia, em nada
difere da dos homens de hoje em dia, pois destes fala o apóstolo quando diz que
“prosseguiram pelo caminho de Caim”. A religião destes consiste em
tentar agradar a Deus através de suas obras. Sem considerar a Palavra de Deus,
afastam da consciência a ideia de um juízo inevitável. Porém, o exemplo de Caim
tem outro alcance. O fiel testemunho de Abel quanto à justificação pela fé, dá
lugar ao ódio de Caim contra seu irmão, imagem também do ódio do povo judeu
contra Cristo. Esse ódio contra o que é nascido de Deus caracteriza
particularmente os últimos tempos em todo o Apocalipse.
Balaão: uma religião perversa
Se Caim representa o estado de todo o
mundo religioso, o caso deBalaão tem um alcance mais restrito. É,
se me atrevo a expressar assim, o mal eclesiástico. Já sabem quem
era Balaão: um profeta; não um falso profeta, pois seus dons haviam sido
recebidos de Deus, porém os unia a práticas idólatras: saía ao “encontro de
maus presságios”. Presumia conhecer a vontade de Deus, de propósito ensinava
erros. Com que finalidade? Por dinheiro! Cobrava por isso; obtinha um salário
pelo ensino destinado a aniquilar o povo de Deus. Pouco importava a Balaão que
Satanás estivesse por traz de tudo aquilo, seu intuito era enriquecer através
disso. “Amou” - disse Pedro - “o prêmio da injustiça” (II Pedro
2:15). O Apocalipse nos revela um segundo caráter de Balaão, consequência
forçosa do primeiro. Fala da “doutrina de Balaão, o qual ensinava a Balaque
a armar ciladas diante dos filhos de Israel para comerem coisas sacrificadas
aos ídolos e praticarem a prostituição” (capítulo 2:14). Por isto sabemos o
que o livro de Números nos diz: que Balaão, vendo que perdia a sua recompensa,
aconselhou a Balaque que seduzisse Israel por meio das filhas de Moabe, para
fazê-lo curvar-se diante de Baal-Peor (Números 25:1-4). É triste ter que
comprovar, queridos irmãos, que ensinar erros em troca de recompensa é uma das
características da apostasia e que corresponde ao cristianismo de nossos dias.
Vê-se ocupar o púlpito homens que negam as mais importantes verdades da fé e
que ensinam o erro ocultando-o sob palavras destinadas a enganar aos ingênuos
com o veneno que elas contêm. Esse erro não é algo futuro, pois, começava já a
manifestar-se nos dias de Judas. Existe hoje também, e a palavra de Deus
pronuncia o “ai” sobre quem o propaga.
Coré: um desafio aberto à autoridade
divina
Encontramos, no caso de Coré,
um último passo no caminho do mal: “e pereceram na revolta de Coré”.
Coré era um levita que ambicionava usurpar a dignidade de Aarão no seu
sacerdócio. Queria dominar o povo de Deus apoderando-se de um ofício atribuído
numa ocasião ao irmão de Moisés e conferido na atualidade a Cristo. Lemos
também, no livro de Números, que Coré havia se associado a Datã e Abirão
rubenitas, os quais se levantaram contra Moisés e se recusaram a obedecê-lo.
Moisés era, no seu tempo, o verdadeiro rei de Israel (Deuteronômio: 33.5). Na
atualidade, este verdadeiro rei é Cristo, a Quem tem sido confiada a autoridade
da parte de Deus. Coré, Datã e Abirão lhe negam obediência. É figura da aberta
rebelião contra Cristo, o último caráter, em parte ainda futuro, da apostasia.
Aproxima-se o dia em que a cristandade não desejará saber mais nada Dele, nem
como sacerdote, nem como Rei, nem como Deus. Negará ao Pai e ao Filho. Este
último caráter, a apostasia de Coré, é o pior de todos. Vemos,
pelos juízos que caem sobre estes diversos personagens, de que forma Deus
avalia as ações deles. Caim, amaldiçoado por Deus, caminha errante e vagabundo
pela Terra; Balaão cai sob a espada de Israel juntamente com os reis de Midiã;
a terra traga Coré e seus parentes, que descem vivos ao sepulcro, como
precursores de seu último representante, o Anticristo, que terá a mesma sorte
no lago de fogo. Tal é, queridos irmãos, os esclarecimentos dos princípios do
mal. É necessário que todos nos demos conta do que é o mundo em sua relação com
Deus e a sorte que o espera, e se isto é assim, seu futuro nos encherá de uma
profunda piedade para com ele - como veremos no final desta epístola - de um
zelo mais ardente para salvar as almas que fazem parte deste sistema. Porém,
por outro lado, não podemos buscar sua amizade, já que o juízo pesa sobre sua
cabeça. Moisés disse ao povo, quando houve a rebelião de Coré: “Desviai-vos,
peço-vos, das tendas destes homens perversos” (Números 16:26). Um Israelita
teria sido obediente à palavra do Senhor se houvesse ido apertar as mãos dos
ímpios lhes declarando amizade? Esta desobediência, pelo contrário, não teria
feito o israelita correr o risco de compartilhar da sorte deles?
Versículos 12-13: “Estes
homens são como rochas submersas, em vossas festas de fraternidade,
banqueteando-se juntos sem qualquer recato, pastores que a si mesmos se
apascentam; nuvens sem água impelidas pelos ventos; árvores em plena estação
dos frutos, destes desprovidas, duplamente mortas, desarraigadas; ondas bravias
do mar, que espumam as suas próprias sujidades; estrelas errantes, para as
quais tem sido guardada a negridão das trevas, para sempre.”
Todos estes exemplos do fim, assim como
as palavras saídas em outro tempo da boca do profeta Enoque, se relacionam com
“estes”, quer dizer, com os homens dos últimos tempos, e estes tempos são, para
nós, os atuais. O apóstolo acrescenta ainda a esse quadro uma ruptura geral, na
qual reconheceremos o mundo atual: a iniquidade contínua e a agitação
sem trégua. São, disse, “nuvens sem água impelidas pelos ventos... ondas
bravias do mar”. Isaías expressa o mesmo pensamento: “Mas os perversos
são como o mar agitado, que não se pode aquietar, cujas águas lançam de si lama
e lodo” (capítulo 57: 20). Se por casualidade parecem lançar raízes, são “árvores... duplamente
mortas, desarraigadas”. Sim, o mundo atual está em contínuo movimento e sua
marcha cada vez se acelera mais. Como seus trens, automóveis, aviões, etc...
precipita-se para o abismo, temendo, ao pensar em conceder um só instante à
reflexão, nesta corrida vertiginosa, para perguntar aonde vai e pensar
seriamente em seu futuro. Lamentavelmente, como estrelas errantes,
desaparecerão nas trevas eternas. Somente o cristão possui o repouso neste
mundo, porque seu repouso está em Cristo. Seu coração e sua consciência têm
edificado sobre a rocha dos séculos, eterno fundamento da fé.
A profecia de Enoque
Versículos 14-16: “Quanto a
estes foi que também profetizou Enoque, o sétimo depois de Adão, dizendo: Eis
que veio o Senhor entre suas santas miríades, para exercer juízo contra todos e
para fazer convictos todos os ímpios, acerca de todas as obras ímpias que
impiamente praticaram e acerca de todas as palavras insolentes que ímpios
pecadores proferiram contra ele. Os tais são murmuradores, são descontentes,
andando segundo as suas paixões. A sua boca vive propalando grandes
arrogâncias; são aduladores dos outros, por motivos interesseiros.”
Enoque profetizou antes do dilúvio.
Evidentemente sua visão de profeta advertia sobre o juízo que séculos mais tarde
cairia sobre o mundo por meio do dilúvio, porém, olhava muito mais longe, no
futuro. Sua profecia, através de milhares de anos, chega aos nossos dias, pois
ela nos fala da vinda de Cristo em juízo com seus milhares de santos. Enoque
não esperava o dilúvio - o qual não o alcançou - mas ao Senhor. Por isso, sua
esperança se viu satisfeita, já que foi arrebatado sem passar pela morte e
voltará com Cristo quando Ele vier acompanhado pelo exército celestial para
executar vingança contra os homens ímpios de nossos dias. Depois de haver
pintado o quadro dos ímpios em suas relações com Deus, o apóstolo considera
ainda o caráter moral dos mesmos. Este exame é da maior importância,
pois com frequência, quando falamos da horrível condição dos ímpios, pessoas
bem intencionadas nos respondem: “Sem dúvida é angustiante que haja outro modo
de pensar que o nosso sobre estes assuntos, porém são pessoas honradas, firmes
e irrepreensíveis quanto à conduta, etc.”. É assim que a Palavra se refere a
eles? Ouçamos o que nos diz: “Os tais são murmuradores, são
descontentes, andando segundo as suas paixões. A sua boca vive propalando
grandes arrogâncias; são aduladores dos outros, por motivos interesseiros.”
“Murmuradores” (ou queixosos de sua
sorte): Não é acaso o que cada vez mais caracteriza ao mundo que vive sem Deus?
Um véu de descontentamento e de amarga tristeza se estende por todos os lugares
sobre os espíritos; procura-se fugir disso por meio de uma agitação febril,
porém, em vão. Podemos encontrar alguém feliz no mundo? Ainda, o pensamento de
que outro alcançou o que desejava faz nascer ciúmes no coração: “queixosos
de sua própria sorte”. O apóstolo acrescenta que “andando segundo
as suas paixões. A sua boca vive propalando grandes arrogâncias”. O
orgulho, a satisfação própria, a pretensão do poder, andam em concordância com
a busca de secretos desejos do coração. Enfim “são aduladores dos outros,
por motivos interesseiros”. Não é este o costume do mundo? Professam
admiração pelos demais, dizem palavras agradáveis pela vantagem que levarão
nisso. Temos seguido até o fim desta triste enumeração dos elementos do mal, já
amplamente desenvolvido em nossos dias e que estão às vésperas de precipitar
essa corrida de uma forma que não se possa reprimir. A apostasia é como essas avalanches
que vemos formar-se nas montanhas. A princípio não são senão alguns fragmentos
de neve que vão rolando pelo declive da cobertura de neve. Estes fragmentos de
neve arrastam a outros e, de repente, com uma rapidez desvairada, esta torrente
sólida se precipita, arrasando tudo o que encontra pela frente, até que enche o
vale com seus restos. O mundo atual pode esperar este desastre moral do fim de
um momento para outro.
Exortações finais
Versículos 17-18: “Vós, porém,
amados, lembrai-vos das palavras anteriormente proferidas pelos apóstolos de
nosso Senhor Jesus Cristo; os quais vos diziam: No último tempo, haverá
escarnecedores, andando segundo as suas ímpias paixões”.
Acabamos de ver o estado da cristandade
e o juízo que lhe espera. Agora o apóstolo se dirige aos fiéis –
a todos vocês, amados de Jesus Cristo – para exortá-los. Esta expressão “Vós,
porém” é a contrapartida de “estes”. A vocês, filhos de Deus, o
Espírito Santo ensina o que têm que fazer e qual a salvaguarda na presença do
mal que aumenta. Ele (o Espírito) os conduz à Palavra de Deus tal como lhes tem
sido transmitida no Novo Testamento pelos apóstolos de nosso Senhor Jesus
Cristo. A segunda epístola de Pedro, a qual contém a mesma exortação,
acrescenta ao Novo Testamento o conteúdo do Antigo: “para que vos recordeis
das palavras que, anteriormente, foram ditas pelos santos profetas,
bem como do mandamento do Senhor e Salvador, ensinado pelos vossos
apóstolos” (capítulo 3:2). Da mesma forma, o versículo 18 de nossa
epístola corresponde a 2 Pedro 3:3 “tendo em conta, antes de tudo, que, nos
últimos dias, virão escarnecedores com os seus escárnios, andando segundo as
próprias paixões”. Temos de recordar que “nos últimos dias” ou nos “últimos
momentos”, sobrevirãoescarnecedores. Sua atual aparição nos prova que
temos chegado certamente a estes últimos tempos. Por um lado encontramos grande
alívio ao pensar que, dentro de muito pouco tempo, todo este mal haverá
terminado de desenvolver-se e seremos introduzidos na glória de nosso Senhor
Jesus Cristo: porém, por outro lado a comprovação desta última forma do mal é a
mais séria e deve nos colocar em guarda. O capítulo 3 da segunda epístola de
Pedro descreve detalhadamente estes enganadores: “andando segundo as
próprias paixões, e dizendo: Onde está a promessa da sua vinda? Porque, desde
que os pais dormiram, todas as coisas permanecem como desde o princípio da
criação". Estas pessoas não são, como se poderia pensar, daquelas que
tudo levam na brincadeira e que pretendem ridicularizar as coisas divinas: esta
maneira de ser estava na moda há mais de um século e meio. Os enganadores dos
últimos dias são enganadoresformais e sérios que rejeitam a Palavra
de Deus em nome da ciência e da razão e estimam que só é digno de ser crido o
que se vê. Creem na eternidade da matéria, pois “as coisas
permanecem como desde o princípio da criação”. Se professam uma alta estima
pela pessoa de Jesus Cristo como personagem histórico e autêntico, sua
carreira, na opinião dos mesmos, terminou na cruz. Portanto, rejeitam a
promessa de sua vinda.
Versículo 19: “São estes os
que promovem divisões, sensuais, que não têm o Espírito”.
Quando Judas escrevia, a Assembleia
cristã subsistia ainda como um todo, tendo em seu seio gente “que promove
divisões”. Não esqueçam amados leitores que existem duas classes de separação:
uma aprovada por Deus, outra condenada por Ele. A primeira é a
separação do mundo, segundo está escrito: “Retirai-vos do meio deles,
separai-vos, diz o Senhor; não toqueis em coisas impuras; e eu vos receberei, e
serei vosso Pai, e vós sereis para mim filhos e filhas, diz o Senhor
Todo-Poderoso” (II Coríntios 6: 17,18). A outra consiste em separar-se destes
homens “sensuais que não têm o Espírito”, quero dizer, a separação em meio à
cristandade. Tais homens haviam falhado entre os fiéis, sem ser deles, e
formavam no meio deles “heresias ou seitas de perdição”, tomando parte em suas
provocações e corrompendo aqueles que não deveriam tê-los recebido. A primeira
epístola de João nos mostra uma segunda fase da separação destes homens.
“Saíram dentre nós, mas não eram dos nossos; porque, se fossem dos nossos,
teriam permanecido conosco; mas todos eles saíram para que se manifestasse que
não são dos nossos” (1 João 2:19). O dever de todo cristão, em nossos dias,
consiste em separar-se deles, em não admiti-los na Assembleia dos crentes e não
se juntar a eles no terreno que ocupam. Procede-se assim? Não! Lamentável! A
influência nociva dos homens “sensuais, que não têm o Espírito” é tolerada e
aceita hoje em meio à profissão cristã!
Versículos 20-21: “Vós, porém,
amados, edificando-vos na vossa fé santíssima, orando no Espírito Santo,
guardai-vos no amor de Deus, esperando a misericórdia de nosso Senhor Jesus
Cristo, para a vida eterna.”
Depois de nos haver prevenido, a
Palavra de Deus nos exorta e enumera nossos recursos em meio a
este estado de coisas. Voltamos a encontrar aqui uma verdade muito preciosa da
qual já temos falado, e é que Deus pode ser perfeitamente glorificado pelos
seus no meio de uma cristandade arruinada.
A primeira exortação é que nos
edifiquemos sobre nossa santíssima fé, a fé “que uma vez por todas foi
entregue aos santos" (v 3). Como temos dito, é evidente que não
podemos edificar-nos sobre o pobre fundamento do que se encontra em nosso
coração, enquanto que esta fé – a doutrina cristã - contida na Palavra que
nos tem sido confiada, é santíssima, porque por ela o Senhor quer
nos separar eternamente do mundo, para Ele: “Santifica-os em tua
verdade; a tua Palavra é a verdade” (João 17:17). A Palavra é, pois, nosso
recurso para glorificar ao Senhor.
A segunda exortação é: “orando no
Espírito Santo”. Se bem que Deus nos santifica para Ele, por meio das
Sagradas Escrituras, também o faz pela oração. A oração manifesta nossa
dependência em relação a Deus. Por ela nos aproximamos Dele e apresentamos
nossas necessidades. Assim, entramos em relação direta com Ele em nossa vida
cotidiana; porém, para que seja eficaz, a oração deve ser feita pelo Espírito
Santo. De modo que sejamos santificados, separados para Deus, primeiro pela
Palavra, e também pelo exercício habitual da oração. A terceira exortação é da
maior importância: “Guardai-vos no amor de Deus”. O Espírito Santo tem
derramado este amor em nossos corações e devemos conservar-nos
nele, vigiando para que não haja em nossas almas a menor coisa que possa
perturbar o gozo deste amor. A quarta exortação é: esperar “a misericórdia
de nosso Senhor Jesus Cristo” (v. 21). É a esperança cristã.
Esses versículos contêm, pois, os três sinais característicos do filho de Deus,
tão frequentemente mencionados no Novo Testamento: a fé, o amor e a esperança.
Essa última é tão importante como as outras duas; espera a vida eterna na qual
só a misericórdia de Deus pode nos introduzir. Aqui, a vida eterna não é - como
nos escritos de João - a que o cristão possui, mas aquela na que vai entrar,
enquanto desfruta dela imperfeitamente aqui embaixo. Note que nestes versículos
(20 e 21) nossos recursos consistem em nossas relações com o Pai, o Filho e o
Espírito Santo.
Versículos 22-23: “E
compadecei-vos de alguns que estão na dúvida; salvai-os, arrebatando-os do
fogo; quanto a outros, sede também compassivos em temor, detestando até a roupa
contaminada pela carne”.
Temos também, como cristãos, deveres
para com os que são contenciosos e deveres para com nossos irmãos. Enquanto os
enganadores que disputam (como Satanás, seu amo, disputava com o arcanjo
Miguel) temos que repreendê-los dizendo-lhes também: “O Senhor te repreenda!”
Já não é tempo de tratar de persuadi-los. Estamos no tempo a respeito do qual
nos é dito: “Quem é injusto faça injustiça ainda; e quem está sujo suje-se
ainda; e quem é justo faça justiça ainda; e quem é santo seja santificado ainda”
(Apocalipse. 22:11). Porém, as almas de nossos irmãos podem deixar-se seduzir
por aqueles faladores e por suas falsas doutrinas que criticam a Palavra de
Deus e a pessoa do Salvador. Que temos que fazer por eles? Salvá-los com temor,
arrancando-os do fogo. Um cristão comparou a epístola de Judas com uma casa
incendiada. É preciso salvar a todo o custo os moradores, inclusive arriscando
a nossa vida: nenhum esforço deve ser medido, pois conhecemos o valor de suas
almas. É preciso que se deem conta dos perigos iminentes no qual se encontram.
Vamos salvá-las com temor. Tal é nosso objetivo principal ao dirigir aos
cristãos a grave advertência contida nestas páginas. Assim, no que nos diz
respeito, se queremos ser úteis aos demais, aprendamos a detestar até “a
roupa contaminada pela carne”, a evitar todo o contato com quem professa
impureza (a roupa é o símbolo da profissão) da qual nos fala esta epístola ,
chamando-a contaminação ou sociedade da carne (veja Apocalipse. 3:4). Da mesma
maneira, na segunda epístola aos Coríntios, o apóstolo, depois de haver falado
da obrigação imperiosa, para a família de Deus, de separar-se do mundo,
acrescenta, quanto ao nosso testemunho individual: “purifiquemo-nos de toda
imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a santificação no temor de Deus”
(2 Coríntios 7:1). Queira Deus ajudar a todos os Seus filhos a colocar em
prática estas coisas e a cada um deles ajudar a perguntar-se: você manifesta de
forma prática as características recomendáveis por esta epístola para os tempos
atuais? Se não podemos responder com um sim de maneira positiva, não deveríamos
nos sentir profundamente humilhados ao ver que manifestamos tão pouco o que o
Senhor nos recomenda?
Doxologia
Versículo 24: “Ora, àquele
que é poderoso para vos guardar de tropeços e para vos apresentar com
exultação, imaculados diante da sua glória”.
Diante disso, se não sabemos nos
guardar das influências nocivas que nos rodeiam, temos um recurso: a ajuda de
Deus! Só Ele é capaz de nos guardar. Confiemos Nele, pois, bem o sabemos, não
podemos ter confiança em nós mesmos. Não é maravilhoso que esta epístola – que
é um quadro do desenvolvimento irresistível do mal nos últimos dias - nos
ensine ao mesmo tempo como podemos ser guardados de deslizes em um caminho
cheio de obstáculos e emboscadas?
Nos anima por meio da certeza de que
Deus é capaz de cumprir perfeitamente o que somos incapazes de fazer, e de nos
colocar, pela eternidade, irrepreensíveis diante de sua glória, com gozo
abundante. Que vigor nos inspiram essas palavras! Quão precioso é que sejam
dirigidas para o tempo atual, e não para um tempo no qual tudo estava
relativamente em ordem! Quão alentador é pensar que o poder de Deus não mudou,
nem se deixa mudar pelas circunstâncias e se glorifica tanto mais quanto se
manifesta num tempo de desolação moral e de ruína! Quanto mais vai crescendo a
apostasia, mais indispensável é que não tenhamos confiança em nós mesmos e que
nos apoiemos Naquele que quer nos guardar e nos introduzir no gozo eterno de
sua glória.
Versículo 25: “ao único Deus,
nosso Salvador, mediante Jesus Cristo, Senhor nosso, glória, majestade, império
e soberania, antes de todas as eras, e agora, e por todos os séculos. Amém!”
Não encontramos uma só epístola do Novo Testamento na qual o louvor ao Deus
Salvador seja derramado tão ricamente como nesta epístola de Judas. Não somente
nossa marcha pode glorificar a Deus nestes tempos maus, mas apreciaremos tanto
mais sua glória quanto mais difíceis sejam as circunstâncias em que nos
encontremos. Só o fato de reter o nome de nosso Senhor Jesus Cristo e de não
negá-Lo quando é atacado por todos os lados, nos qualifica para compreender
esta glória e celebrá-la, e nos faz provar antecipadamente da grande reunião
celestial na qual serão pronunciadas ao redor do trono palavras semelhantes a
estas : “Digno és, Senhor, de receber glória, e honra, e poder”!
(Apocalipse 4:11).
“Digno é o Cordeiro, que foi morto,
de receber o poder, e riquezas, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e
ações de graças... Ao que está sentado no trono, e ao Cordeiro,
seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio, pelos séculos dos séculos”
(Apocalipse 5:9, 13).
Amados irmãos e irmãs, que Deus nos ajude a enfrentar estas coisas, a não nos iludirmos acerca dos sinais dos dias que atravessamos, mas ouvir as exortações desta epístola.
Assim, em vez de manifestar uma
culpável indiferença para o mal, ou de desanimarmos, andaremos cada vez mais
firmes, tendo à nossa disposição o poder de Deus, sempre pronto a nos conduzir,
nos sustentar e a nos guardar das quedas até a vinda gloriosa de nosso Senhor
Jesus Cristo. Amém.
H. Rossier
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